Naquela noite, Gabriela se aproximava da Vila do Gambá. Andando vestida em trajes pesados para suportar o frio e com um grande chapéu a fim de guardar sua identidade. Todos dormiam. Ela andou até as ocas, olhando para dentro de cada uma, até encontrar, na oca maior, sua presa adormecida ao lado do próprio Renato. Marcus, em sua oca, se levanta, apertado pra fazer xixi. Ele sai de sua oca, pronto pra mijar num arbusto. Ele então percebe alguém olhando pela janela da oca de Renato. Ele vai até um arbusto e, discretamente, observa a pessoa enquanto mija. Gabriela entra furtivamente na oca de Renato enquanto Marcus observa de seu arbusto. Sua urina fazia quase nenhum barulho, entrando em contato com a terra arenosa. Quando Marcus acabou de mijar, Gabriela começou a sair da oca, levando Rosalina consigo. Rosalina parecia rendida, com correntes nas patas. Marcus gelou e continuou observando, até as duas fêmeas sumirem na trilha. Enquanto isso, na oca de Renato, o pequeno gambá rolou em sua cama de palha. Ele rapidamente abriu os olhos e sentou-se, procurando por Rosalina com seu olhar. Ele então saiu da oca e olhou para os lados. Marcus aproximou-se de Renato. – Renato! – ele disse. – Marcus – Renato saudou seu amigo. – Rosalina foi levada. – Por quem? – Uma pessoa pequena, igual a nós dois, usando roupas pesadas e longas. – Em que direção foram? Marcus apontou para a trilha leste. Renato olhou para a trilha, em seguida para Marcus. – Vamos juntos lá – ele disse. Marcus sorriu, mas escondeu o sorriso em seguida, tímido. – Você tá me chamando pra ir com você! – ele sussurrou. Renato assentiu. – Claro! – piou Marcus. – Mas eu tenho que dizer que eu sou o líder e eu dou as ordens – disse Renato. – Então faça o seu melhor. Marcus fica nervoso, mas assente. Aquela seria sua chance de chamar atenção de Renato. A dupla anda pela trilha até uma bifurcação. Renato sente o cheiro no ar. Ele então pega o caminho da esquerda. – Aí só tem uma fenda – disse Marcus. – Eu sei, mas eles foram por aqui – disse Renato. – Eu queria que você não me questionasse. Marcus ficou sentido com aquilo. – Mil desculpas… - ele disse. – Relaxa – respondeu Renato. Eles chegam até uma fenda enorme no chão. Tinha seis metros de profundidade e doze quilômetros de comprimento. A trilha acabava ali e a floresta continuava do outro lado da fenda, com as margens a uma distância de um quilômetro uma da outra. Havia densa vegetação crescendo dentro da fenda, com algumas árvores crescendo até as bordas. – Escalaremos pra baixo – disse Renato. Marcus assentiu. Eles começaram a descer, confiando no faro do gambá. Após alguns minutos, eles chegam até o fundo. – É muito escuro – reclamou Marcus. – Nem me fale – disse Renato. – Eu conheço as trilhas daqui. Só me dá a sua asa. Marcus dá a asa pra Renato, o qual o guia nas trevas. Marcus sentia-se seguro na presença de Renato e ele gostava de segurar a pata do gambá. Eles chegam até um rio que corria no centro da fenda. As copas das árvores eram distantes o bastante para que a luz da lua chegasse ao rio, tornando-o o local mais claro da fenda. Havia um grande tronco de árvore derrubado sobre o rio, conectando as duas margens. – Eu tenho que soltar sua asa pra me equilibrar – disse Renato. – Vamos passar por cima desse negócio. Marcus estava com medo e já começava a tremer. No entanto, ele assentiu, por Renato. Eles subiram o tronco e começaram a andar sobre ele devagar. Marcus, porém, olhou para baixo e, ao ver a água a correr violentamente sob o tronco, temeu. Ele perdeu o equilíbrio e caiu, gritando. Renato ouviu e olhou para trás, vendo Marcus sendo carregado pela correnteza. Ele imediatamente pulou para salvar seu amigo. Renato nadou a favor da corrente em direção a Marcus, a toda velocidade. Marcus se debatia na água tentando boiar. Renato agarrou Marcus pela asa e a nadou diagonalmente até a margem, onde ele agarrou-se com a outra pata. – Sobe! – ele disse. Marcus subiu a margem e Renato subiu logo em seguida. Marcus estava ofegante. – Que aconteceu? – perguntou Renato. – Eu tive medo de cair e acabei caindo… - disse Marcus, tentando recuperar o fôlego. Renato meneou a cabeça. – Sei… - ele disse. Marcus suspirou. – Eu sinto muito – disse Marcus. – Devo voltar? – Não, não precisa – disse Renato. Eles se levantaram e continuaram o caminho, apesar de ensopados. Enquanto se aventuram mais fundo na floresta e a luz do luar se tornava tímida novamente, Marcus afagava a barriga. – Tá com fome? – pergunta Renato, ao perceber. Marcus assente. – Segura aí – disse Renato. – Fica aqui, que eu vou atrás e encontro algo. Renato não erraria daquela vez. Ele estava bem concentrado e pegou as frutas certas. Ele voltou para onde Marcus estava e lhe ofereceu maçãs. Eles comeram as maçãs que Renato pegara e se restabeleceram. Voltando ao caminho, eles chegam a uma bifurcação. – E agora? – perguntou Marcus. Renato cheiro o ar novamente. – Direita – ele disse. Marcus não duvidava do nariz de Renato. Afinal, não apenas Renato conhecia o local, mas também ele era o mais capaz para missões de resgate. O que intrigava a ave era como Renato conseguia, tão facilmente, seguir o cheiro de Rosalina. Marcus não sabia que Renato e Rosalina dormiam próximos um do outro e aquilo não passava por sua cabeça, porque, para Marcus, Renato era o filhote mais casto que existia. Se inocência não é um atributo mítico, Renato era, ao menos na imaginação de Marcus, a verdadeira incarnação da inocência. No entanto, essa era apenas uma imagem que Renato queria passar. Renato não queria perder Rosalina. Ele podia mentir para si mesmo e dizer o quanto quisesse que apenas queria zelar pela segurança da visitante, mas, no fundo, ele bem sabia que seu desejo de salvar Rosalina tinha, sim, um componente erótico. Já no caso de Marcus, também havia um componente erótico em seguir seu amigo. Ele achava Renato uma gracinha: suas coxas, seu traseiro, sua barriga e sua carinha rechonchuda. Renato era bastante atraente. Embora Marcus sempre tenha se interessado por fêmeas, Renato o fazia questionar se era delas ou deles que ele gostava mais. Renato para de seguir a trilha e funga o ar mais um pouco. – Por aqui – ele diz, entrando no mato. – Eles estão fora da trilha. Marcus seguiu Renato, apesar de estar com medo. Eles chegam até uma clareira, da qual não partem quaisquer trilhas. Há uma casa improvisada, de madeira, no centro da clareira. Eles se aproximam e ouvem vozes lá dentro. Renato chuta a porta e ela vai abaixo. Lá estavam Gabriela, Quirina e Rosalina, a qual estava amarrada a uma cadeira. Gabriela, ao ver os invasores, imediatamente correu na direção de Renato, o qual preparou o cajado que trazia. Gabriela, munida de uma luva com cravos, tentou acertar um soco em Renato, mas Renato se tirou do caminho e a empurrou pra trás com o cajado. Embora Renato fosse um bom lutador em combate de curta distância, ele nunca havia visto uma arma de fogo antes. Quirina sacou um revólver e mirou no pequeno intruso. Marcus, vendo que o conflito começara, saiu da casa e observou pela janela. Renato acerta Gabriela na costela, mas algo parecia errado: havia algo sob a camisa de Gabriela que amortecia parte do impacto. A cadela quase não sentiu qualquer coisa. Gabriela tenta acerta um soco em Renato, mas o gambá rapidamente usa seu cajado pra aparar o ataque, ferindo Gabriela no braço. – Deixem a guaxinim ir! – insistiu Renato. A resposta veio na forma de um tiro disparado por Quirina. O tiro acerta o braço de Renato, o qual prontamente segura o local ferido. “Armas de fogo!”, pensou Renato. Marcus, o qual estava olhando pela janela, começou a tremer. Ele nem sequer podia gritar, mas apenas assistir, tão tenso que estava. Contra armas de fogo, Renato só podia apelar pra diplomacia. Gabriela atacou novamente, tentando atingir Renato com a soqueira, mas Renato novamente aparou o golpe com o cajado. O segundo tiro acertou a perna de Renato, o qual rapidamente perdeu o equilíbrio e se ajoelhou com uma das pernas. - Para! – Marcus gritou. – A gente vai embora, só para de atirar! – Sim – disse Rosalina, amarrada. – Renato não continuará. Renato estava ao chão, agarrando o ferimento da perna, o qual não parava de sangrar. Ele tentava não chorar, tanto por causa da dor como porque ele estava sendo salvo por quem ele se propunha salvar. – A gente vai embora… - disse Marcus, com voz trêmula, já chorando. – Renato, por favor – disse Rosalina. – Só volte pro seu povo. Eles precisam de você. Renato se recompõe e se levanta. Sem olhar nos olhos de suas opositoras, ele se retira. Marcus vai até Renato, a fim de abraçá-lo, mas Renato não parecia em condições disso. Ele estava cabisbaixo e chiando quase silenciosamente. Seus ferimentos doíam menos que seu orgulho e sensação de ter cometido grave imprudência. No fundo, ele sabia que tinha ido despreparado para mostrar sua força à Rosalina. Ele sabia que havia se mostrado fraco e idiota naquela madrugada. Ele andou lentamente até Marcus e disse com uma voz trêmula e um pouco mais aguda do que o habitual: – Vamos embora. Eles começam a andar o caminho de volta, com muito esforço. No caminho, Marcus deu-se conta de que tinha molhado a fralda. Ele olhou pra trás e esperou que Renato não tivesse percebido o cheirinho de xixi que acompanhava eles. No caminho, Marcus ouviu Renato chorar. Ele estava parado, cobrindo o rosto com o braço. – Eu sou um idiota… - disse Renato. Marcus, ao ver aquilo, sentiu que choraria também. Ele sacudiu a cabeça e tentou se mostrar forte. Marcus se aproximou de Renato e abraçou-o. Renato não abraçou de volta. – Você fez o que podia… - disse Marcus. – Não… - respondeu Renato. – Quem sai pra buscar uma pessoa sequestrada só com um pedaço de pau? – Mas você… – Eu queria impressioná-la – a voz de Renato começou a ficar ainda mais trêmula. – Eu queria que ela gostasse de mim tanto quanto eu gosto dela. Desde que ela chegou, eu cometo erro após erro. Aposto que ela me acha um tolo, ainda mais agora! Renato caiu de joelhos e começou a agarrar a terra, chorando alto, tanto de tristeza e vergonha quanto de raiva de si mesmo. Marcus sentiu seus próprios olhos encherem d’água. Ele se agachou e abraçou seu amigo, silenciosamente. Marcus passou quinze minutos confortando Renato, antes que os dois pudessem prosseguir.